quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

AFINIDADE - Arthur da Távola



A afinidade não é o mais brilhante, mas o mais sutil, delicado e penetrante dos sentimentos.


O mais independente.

Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos, as distâncias, as impossibilidades.


Quando há afinidade, qualquer reencontro retoma a relação, o diálogo, a conversa, o afeto, no exato ponto em que foi interrompido.


Afinidade é não haver tempo mediando a vida.


É uma vitória do adivinhado sobre o real.Do subjetivo sobre o objetivo.


Do permanente sobre o passageiro.Do básico sobre o superficial.


Ter afinidade é muito raro.

Mas quando existe não precisa de códigos verbais para se manifestar.


Existia antes do conhecimento, irradia durante e permanece depois que as pessoas deixaram de estar juntas.


O que você tem dificuldade de expressar a um não afim, sai simples e claro diante de alguém com quem você tem afinidade.


Afinidade é ficar longe pensando parecido a respeito dos mesmos fatos que impressionam, comovem ou mobilizam.


É ficar conversando sem trocar palavra.


É receber o que vem do outro com aceitação anterior ao entendimento.


Afinidade é sentir com.


Nem sentir contra, nem sentir para, nem sentir por, nem sentir pelo.


Quanta gente ama loucamente, mas sente contra o ser amado.


Quantos amam e sentem para o ser amado, não para eles próprios.


Sentir com é não ter necessidade de explicar o que está sentindo.


É olhar e perceber.


É mais calar do que falar.


Ou quando é falar, jamais explicar, apenas afirmar.


Afinidade é jamais sentir por.


Quem sente por, confunde afinidade com masoquismo.


Mas quem sente com, avalia sem se contaminar.


Compreende sem ocupar o lugar do outro.


Aceita para poder questionar.


Quem não tem afinidade, questiona por não aceitar.


Só entra em relação rica e saudável com o outro, quem aceita para poder questionar.


Não sei se sou claro: quem aceita para poder questionar, não nega ao outro a possibilidade de ser o que é, como é, da maneira que é.


E, aceitando-o, aí sim, pode questionar, até duramente, se for o caso.


Isso é afinidade.


Mas o habitual é vermos alguém questionar porque não aceita o outro como ele é. Por isso, aliás, questiona.


Questionamento de afins, eis a (in)fluência.


Questionamento de não afins, eis a guerra.


A afinidade não precisa do amor. Pode existir com ou sem ele.


Independente dele. A quilômetros de distância.


Na maneira de falar, de escrever, de andar, de respirar.


Há afinidade por pessoas a quem apenas vemos passar, por vizinhos com quem nunca falamos e de quem nada sabemos.


Há afinidade com pessoas de outros continentes a quem nunca vemos, veremos ou falaremos.


Quem pode afirmar que, durante o sono, fluidos nossos não saem para buscar sintomas com pessoas distantes,com amigos a quem não vemos, com amores latentes, com irmãos do não vivido?


A afinidade é singular, discreta e independente, porque não precisa do tempo para existir.


Vinte anos sem ver aquela pessoa com quem se estabeleceu o vínculo da afinidade!


No dia em que a vir de novo, você vai prosseguir a relação exatamente do ponto em que parou.


Afinidade é a adivinhação de essências não conhecidas nem pelas pessoas que as tem.


Por prescindir do tempo e ser a ele superior, a afinidade vence a morte, porque cada um de nós traz afinidades ancestrais com a experiência da espécie no inconsciente.


Ela se prolonga nas células dos que nascem de nós, para encontrar sintonias futuras nas quais estaremos presentes.


Sensível é a afinidade.


É exigente, apenas de que as pessoas evoluam parecido.


Que a erosão, amadurecimento ou aperfeiçoamento sejam do mesmo grau, porque o que define a afinidade é a sua existência também depois.


Aquele ou aquela de quem você foi tão amigo ou amado, e anos depois encontra com saudade ou alegria, mas percebe que não vai conseguir restituir o clima afetivo de antes, é alguém com quem a afinidade foi temporária.


E afinidade real não é temporária. É supratemporal.


Nada mais doloroso que contemplar afinidade morta, ou a ilusão de que as vivências daquela época eram afinidade.


A pessoa mudou, transformou-se por outros meios.


A vida passou por ela e fez tempestades, chuvas, plantios de resultado diverso.


Afinidade é ter perdas semelhantes e iguais esperanças, é conversar no silêncio, tanto das possibilidades exercidas, quantos das impossibilidades vividas.


Afinidade é retomar a relação do ponto em que parou, sem lamentar o tempo da separação.


Porque tempo e separação nunca existiram.


Foram apenas a oportunidade dada (tirada) pela vida, para que a maturação comum pudesse se dar.


E para que cada pessoa pudesse e possa ser, cada vez mais, a expressão do outro sob a forma ampliada e refletida do eu individual aprimorado.

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